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Ideal de crescimento do séc XIX gera "vilas de câncer" na China

Nenhuma nação na história levou sua economia ao topo sem custos ao meio ambiente. A China se transformou na "fábrica mundial" ao garantir ao mercado global acesso à mão de obra abundante e recursos naturais sem compromisso com a natureza ou populações locais. No início dos anos 2000, estudos revelaram a existência de 459 "vilas de câncer" - pequenos vilarejos sempre próximos a zonas de desenvolvimento, onde a terra é a hospedeira e os alimentos e a água, o veneno.

As "vilas de câncer" existem oficialmente em 29 das 31 províncias mandarins (Tibet e Qinhai não apresentam casos, devido à pequena população e aos baixos níveis de poluição). Elas são consequências da reforma da China continental (que, em 1979, abriu o país ao mercado internacional) - vilarejos onde o número de pacientes com câncer é extremamente alto, em geral causado por consumo de água contaminada por químicos.

A China padece ao respirar sua revolução industrial. Nos últimos 30 anos, registros de mortes causadas por câncer de pulmão subiram 465%, tornando-se a doença que mais mata no país. Vinte e cinco por cento das mortes na China estão relacionadas ao câncer. Na zona rural, é a segunda maior causa de morte, depois de acidentes cardiovasculares, responsável por 21% das fatalidades. Nos campos, câncer de estômago, fígado, esôfago e cervical têm mais incidência do que nas cidades.

"O problema está no sistema de desenvolvimento - criado pela Inglaterra há 300 anos - que protege o ataque ao meio ambiente pelas indústrias", avalia Jonathan Watts, jornalista inglês e autor do livro Quando um Bilhão de Chineses Pulam (tradução livre).

Estatísticas lançadas pelo governo mostram que o número de mortes causadas por câncer na China subiu rapidamente a partir das reformas econômicas lançadas em 1979. Em 1997, 18 anos depois, a economia chinesa atingia a maioridade e o câncer se tornava a maior causa de morte pela primeira vez na história do país. Em 2007, uma em cada cinco pessoas falecia devido à doença - sendo o pulmão o órgão mais afetado.

Nas zonas rurais, onde estão cerca de 700 milhões de chineses, a falta de acesso à água tratada e à rede de esgoto faz do câncer de estômago, esôfago e fígado os maiores vilões. Os camponeses mandarins são quatro vezes mais propensos a morrer de câncer de fígado e duas vezes mais de padecer de câncer de estômago do que os demais camponeses mundiais, de acordo com estudo do Banco Mundial em 2007. "Os maiores problemas ambientais e de saúde ainda estão divididos pela disparidade entre a população urbana, mais rica, e a rural, muito pobre", explica o geólogo Liu Lee.

Conforme a Organização Mundial da Saúde, entre 2008 e 2010, mortes causadas por câncer subiram 5,6% na China, e a doença mata anualmente 2,1 milhões de chineses.

"Vilas de câncer"
O fenômeno das "vilas de câncer" é diretamente relacionado ao desenvolvimento do país, puxado pela indústria. Guangdong e Jiangsu, as províncias mais ricas do país, têm o maior número de condados registrados com "vilas de câncer". Conforme estudo feito por Lee em 2010, o "cinturão do câncer", que vai de Hebei, ao norte, até Hainan, ao sul, contém 396 vilas de câncer - (86,3% do total nacional), sendo 203 vilas oficialmente reportadas como tal (84% dos totais oficiais). O cinturão compreende mais de 55% da população e quase 60% do PIB.

O surgimento de "vilas de câncer" está ligado à existência de rios, as artérias da economia nacional. Zona ribeirinhas atraem indústrias devido à alta concentração humana, o que garante oferta de mão de obra, transporte e acesso à água. Com o aumento de fábricas e pouco controle governamental sobre as políticas de proteção ambiental e vigilância sobre infrações, a malha fluvial é em geral o destino do lixo produzido pela produção. Os rios Amarelo, Changjiang e Pérola, que cortam as zonas mais ricas do país, concentram a maioria das "vilas de câncer".

Os problemas evidenciados por políticas desiguais revelam maior incidência de vilas câncer nas áreas mais pobres. Isso porque as políticas ambientais tendem a defender zonas urbanas e mais desenvolvidas em detrimento da qualidade do acesso a recursos naturais pelos moradores de zonas rurais. Esses vilarejos são a morada de trabalhadores pobres, que ou vivem da terra e da colheita que abastece as zonas urbanas próximas, ou que viajam até a cidade para trabalhar nas indústrias.

Guangdong é a região mais rica da China, com um PIB de US$ 690 bilhões. Todas as quatro zonas econômicas localizadas na região (Delta do Rio da Pérola, e Norte, Leste e Oeste das Montanhas) têm "vilas de câncer". A zona de Wenyuan, no norte, tem os casos mais sérios, devido à atividade de mineração de ferro e cobre. Esse processo elimina nas águas dos rios sulfeto de cobre, chumbo e cádmio, um metal branco-azulado e altamente cancerígeno. O vilarejo de Liangqiao, mais próximo das minas, é considerado o mais poluído. Shangba, porém, tem o maior registro de mortes. Entre 1978 e 2005, 250 moradores de Shangba morreram de câncer - todos em torno dos 50 anos.

"Crescer primeiro, limpar depois"
A China tem mais "vilas de câncer" que outros países devido às metas de desenvolvimento, que seguem o modelo inglês do "crescer primeiro, limpar depois", e à fraca legislação de proteção do meio ambiente. Ainda incipientes, leis preveem a segurança do crescimento e da limpeza do ambiente em zonas urbanas e que usam as zonas rurais para desenvolvimento industrial sem aplicação ou manutenção das políticas ambientais. "A situação melhorou um pouco após 2004, mas ainda não é ideal. As políticas são fracamente reforçadas ao comprometer o desenvolvimento e o crescimento econômico do PIB", reflete o especialista em meio ambiente na China, Jonathan Watts.

Para Watts, "sendo o sistema político chinês nem democrático nem ditatorial, as investidas mandarins em legislação ambiental não são nem verdes, nem vermelhas". No começo do mês, foi anunciada a mudança do controle de partículas suspensas no ar, que agora serão calculadas também por PM 2,5 (partículas com menos de 2,5 micros de espessura), além da já existente medição de partículas de até 10 micros de dióxido de enxofre, dióxido de notrogênio, monóxido de carbono e ozônio. "Existe um esforço, mas ainda falta pensar no controle de metais pesados", acrescenta.

Diferença social entre moradores urbanos e rurais advém das mesmas políticas. Ao contrário de países ocidentais, onde os mais pobres não estão necessariamente na zona rural. A "democracia chinesa" exclui os moradores rurais do debate sobre a instalação de uma fábrica poluidora. "A China depende mais de instâncias administrativas do que meios legais para lidar com violações ambientais", ressalta Lee. Indústrias pagam multas pela poluição que causam, sem compromisso de diminuir emissões ou de lidar com seu lixo. "Como não há jurisprudência em casos de vítimas de câncer em tais vilas, dificilmente um moção civil contra a indústria gera resultados", explica.

A falta de mobilidade social é também contribui para "vilas de câncer". Como a terra é dividida coletivamente, moradores podem perder suas casas se saírem do local, permanecendo imóveis devido à falta de recursos para pagar um aluguel em outras áreas. Na costa, onde a poluição ocorre no oceano. Lá, a população é mais móvel e, ao migrar para outras regiões, dispersa o registro de casos de câncer, deixando então impossível verificar se existem ou não "vilas de câncer".

Em Shangba, no norte de Guangdong (Cantão), a poluição do rio que abastecia a cidade deixou 270 vítimas de câncer. Desde 2002, a água foi registrada imprópria para o consumo, e, hoje, os moradores da vila usam água de dentro da montanha. "A gente duvida ainda da qualidade da água, mas o que vão fazer? Tirar todos daqui?", questiona Zhang Lihua, 33 anos e natural de Shangba.

"Vilas de Câncer" são assunto sensível
Casos das "vilas de câncer" já foram reportados pela mídia chinesa, principalmente até a virada do século. A CCTV, televisão central e órgão de mídia oficial do Partido Comunista, foi a primeira a falar sobre o assunto. Em 1998, a emissora revelou o caso de contaminação do rio Hai, que nasce na província de Hebei (ao noroeste de Pequim) e corta Tianjin, uma das maiores cidades chinesas e que fica a 112 km da capital.

A água do rio, ao ser analisada, apresentava concentração de demanda química de oxigênio (DQO, que mede a quantidade de matéria orgânica que pode ser oxidada dentro de um líquido) era superior a 1.300 mg - na China, o DQO de 25mg já coloca a água analisada na categoria 5, o pior nível de classificação da qualidade de água no país. Trezentas pessoas morreram de câncer em Hebei entre 1993 e 1998. Em Xiaojizhuang, vila próxima ao rio Hai, uma em cada dez pessoas tinha câncer na época em que a reportagem foi feita.

Não há proibição oficial para a reportagem de "vilas de câncer", mas o assunto apareceu raramente nos jornais e programas de televisão depois de 2009, diz Lee. "No caso mais recente de reportagem sobre "vilas de câncer", em Zhejiang, um morador postou na internet que 31 pessoas morreram de câncer em sua vila acabou na prisão acusado de calúnia", aponta Lee. "Conforme o relato oficial, tinham sido apenas 27 mortes." Por medo de retaliação ou mesmo vergonha, o tema "vilas de câncer" (aizhengcun) é tabu no país. "Afasta investimento, turismo e até casamento", explica o geólogo Lee, referindo-se à prática de mulheres casadas mudarem-se para a terra natal dos maridos.

Futuro?
O futuro das "vilas de câncer" não é consensualmente otimista. Desde que o fenômeno "esfriou" na mídia nacional, casos de "vilas de lixo atômico" e "vilas de aids" começaram a surgir. "Eu, infelizmente, mantenho uma visão pessimista. Mas não perdi as esperanças", conta Watts. "A China precisa lidar com seus problemas com segurança alimentar e energética, e esse é um problema que o país não pode empurrar para os outros. Isso me dá esperanças."

Lee é ainda mais duvidoso em relação ao futuro: "Eu não só acho as "vilas de câncer" vão sumir, como acredito que aumentarão em número". O geólogo, que estuda o fenômeno das "vilas de câncer" há uma década, atenta para o fato de que metais pesados encontram-se no solo dos locais afetados e têm efeitos de longa duração. "É preciso mais controle na aplicação das regulamentações ambientais, um novo modelo de crescimento, menor diferença social entre ricos e pobres e o seguimento da política de desenvolvimento que dá preferência a zonas urbanas", cita o especialista.


Fonte: Fernanda Morena - Portal Terra